18.3.24

filho

passo dois dias
quase sem escrever
para a.
ele também quase
não escreve
não sei onde
ele está
eu estou longe
uma distância nova
que aprendo
com os filmes
e os amigos
de repente
chega compacta
uma mensagem
"oi mãe
acordei com o gato
tossindo aqui"
de longe
nos unimos
na preocupação
por esse ser
que os dois
brincamos
de chamar
de filho

25.1.24

foram dias difíceis
não pensei nisso
mas agora penso:
poderia ser o fim
deste boyhood
o momento do corte
do ponto final
não me lembro
quando parei 
de pontuar os textos
pode ser que eu sonhasse
com uma coisa
que nunca acaba
um corte 
que gera 
outro corte
uma cena final
que é um recomeço
foram dias 
de separação
f. está mais alto que a.
a. tem aparecido
pouco por aqui
ontem fomos os três
tomar um sorvete
na volta a. se queixou
de que estava cansado
de andar:
me carrega
disse ao irmão
rimos muito enquanto
o mais novo andou
com o mais velho
nas costas
depois continuamos
andando
como se nada
tivesse acontecido

6.1.24

o pai dele

f. me pede
pra assinar
de novo o mubi
porque ele quer ver
"aftersun"
o primeiro cartão
não passa
o segundo também
não vai
tento pelo celular
até conseguir
no dia seguinte
pergunto se ele gostou
só quando ele me diz
que chorou
é que a ficha cai:
lembro
que lembrei
o tempo todo de p.
e que também
chorei

23.12.23

boas festas

se alguém próximo
ou não tão próximo
morre
meu pai logo
começa a ronda 
dos telefonemas
para aqueles 
próximos ou não tão
próximos
de quem ele não quer
deixar
de se despedir

23.7.23

acho que já
escrevi isto:
minha casa são
meus filhos

8.7.23

geração

a. tem um amigo 
de 32 anos
ter um amigo
de 32 anos 
é como ter um amiga
de noventa e três
ele é de outra geração
entende?

11.5.23

escrevo logo
com medo 
de que depois
não faça
mais sentido
ainda não
sei direito
pode ser que sim
pode ser que não
hoje de manhã mesmo
falamos j. e eu
sobre a morte
sobre a mãe dele
tudo com aquela
superficialidade
de quem não sabe
ele sabe
mas a gente esquece
desconfio de quem
consegue
escrever mesmo assim
mas se não fizer
mais sentido
então para que
tantas letras 
em tantos lugares
como este
onde talvez
não consiga
mais estar
algum dia
conseguirei traduzir
"el corazón 
del daño"?
conseguirei traduzir
"se vive 
y se traduce"?
os dois falam 
do luto e eu começo
a calcular páginas
para em todo caso
cobrir os dias
com palavras 
que não são minhas


13.4.23

performance

mãe
tem alguma chance
de que o público
saiba que você
é minha mãe?

20.2.23

collected poems

ele vem
numa visita
meio inesperada
vem todo 
de preto
desleixado
decidido 
quer conhecer 
a casa nova
ele vem 
quer vir 
ele pede 
eu deixo 
não esperava 
com a namorada 
eles vêm
ela falante
ele calado
quando fala 
ele pede 
o volume 
dos collected poems 
do allen ginsberg
um livro vermelho 
que eu sei 
exatamente 
onde está 
apesar do caos
da mudança 
um livro 
que é dele
um livro 
que apesar 
da minha falta 
de memória 
sei exatamente 
quando e onde 
ele comprou 
vou até ele
rápido 
pego na estante 
e entrego 
como se essa 
rapidez 
provasse algo
não sei bem 
o quê

19.12.22

 
escrevo no bloco de notas do celular:
"ficar mais próxima dos"
e o aparelho completa
"meninos"

18.9.22

pra depois

a amiga de a.
que dormiu aqui em casa
me pergunta se pode 
tomar um banho
digo que sim e busco
uma toalha pra ela
volto ao meu lugar
de trabalho
hoje é domingo
tenho que escrever
antes que a semana
comece a se acelerar
não isto aqui
isto nunca precisa
ser escrito
mas é que ela
liga o chuveiro
e junto com ele
uma música no celular
penso que é
uma ideia ótima
e que eu deveria
um dia experimentar
não precisa ser hoje
agora que já escrevi
pode ficar pra depois




19.7.22

isso mesmo

ver a paisagem de cima
é o que sinto quando
sento à beira da cama
do meu irmão pra jogar
papo fora e ele me conta
que resolveu estudar música
conto das minhas dificuldades
e ele ri como sempre faz
quando acha que exagero
ele não pensou em mim
mas há algo que atravessa
o tempo e o espaço
uma conexão com alguém
que não poderia ser 
mais diferente de mim
e que de repente pensa
que a música pode ser 
aquilo que faça ver 
a paisagem de cima
um pouco acima ao menos
da algaravia do dia
fico à beira da cama
olhando pra ele 
que ainda não sabe
qual instrumento mas 
quem sabe piano, né?
piano, é, como eu
é, claro, isso mesmo
que bom que eu te contei
me fez ver que é isso mesmo




22.5.22

ultimamente tenho a sensação
de que os aviões pousam mais
devagar
talvez também isso tenha
se desacelerado na pandemia 
ao aterrissarmos em tucumán
tocamos o chão 
em câmara lenta
a até os aplausos demoraram 
a chegar
faz sentido que os aplausos
tenham voltado neste momento
já meu medo de voar só podia
mesmo sumir
assim como veio em algum
momento do passado
quando o chão
parecia um lugar seguro

7.4.22

um amor feliz

ele ainda vem aqui em casa
e se senta no sofá como
se fosse dele porque um dia
foi e é difícil pra ele 
entender que já não é mais

nesse dia que agora volta
ele se sentou no sofá e disse:
"não leio mais poesia"
e eu perguntei se ele dizia
isso só pra me irritar

então eu fui até o quarto
peguei "um amor feliz"
e li pra ele estes versos:
"dizem/ que o primeiro amor
é o mais importante/
isso é muito românico/
mas não é o meu caso"

só agora que o dia volta
eu entendo que era verdade
e que ele estava sofrendo 
só não saberia dizer 
se szymborska ajudou

27.1.22

saussureana

a. atravessa a sala
atrás de onde eu estou
revisando a tradução
do "livro de tamar"
eu digo "filho" sabendo 
que é ele e não f. 
não me virei mas sei 
que é ele pelo jeito 
de andar ou pela respiração
ou sei lá por quê
mas eu sei
sei também que "filho"
neste caso tem 
um referente que é ele 
e não o outro
mas eles nunca sabem
e então me dizem:
você tem dois filhos
eu digo que eu sei
mas a palavra "filho"
gera na minha cabeça 
duas imagens e a cada
vez é uma que aparece
e não se confunde 
com a outra
não sei o que saussure
diria sobre isto
em todo caso
por enquanto
a confusão ainda 
nos faz rir juntos

12.12.21

em dias como este

em dias como este
eu me confundo
será um estribilho?
eu me confundo
e me impressiona
não poder te perguntar
ainda que é claro
eu não teria feito isso
porque não era assim
que funcionava
a morte distorce
e eu me confundo
em dias como este
a três quarteirões
da tua casa
recém-chegada
vejo avós e netes
por toda parte
não sei se xs vejo
porque lembro de você
ou é o contrário
eu me lembro
enquanto vivo
disse varda
naquele filme 
que nós duas adoramos
achei estranho
quando um amigo disse
que para ele
você era um mistério
não vejo como 
você o confundiria
será que perdi algo?
tua clareza 
era desconcertante
talvez isso fosse
misterioso para ele
te vejo passar
em outras mulheres
me vejo refletida
enquanto escrevo
agora tem certas coisas
que são uma citação
escrever no café
buscar estribilhos
falar da morte
ou não conseguir
mando uma mensagem
para o mauro
para dizer
que estou aqui
penso que o conforto
está nesses recados
que não se confundem
com a literatura
e no entanto 
e no entanto
também me conforta
em dias como este
buscar um estribilho
para você

8.9.21


acordei cedo pra traduzir
o livro das moças da tamara
e eis que não sei se em português
a sentença de divórcio
é a sentencia de divorcio
vou ao google que me oferece
páginas e mais páginas
de tudo o que você precisa
saber sobre separação e divórcio
é claro que isto é sobre ela
e no entanto e no entanto
já se passou uma hora
e eu ainda não sei o que é 
a sentencia de divorcio
que chegou pra anne carson
pelo correio e quem sabe
pra ela também mas não
chegou pra mim porque 
eu sequer pedi o meu
embora ao que parece
tudo seja muito simples
se há consenso entre as partes
eu me pergunto qual parte
de mim ainda não conseguiu
perguntar pra ele se afinal
não estaria na hora dessa
separação quatro anos 
depois da outra que parecia
muito mais difícil
e no entanto e no entanto
eu volto pras moças
da tamara sem respostas
e sublinho a sentencia
pra continuar 
a busca
depois

19.7.21

fran

a fran não gostou de mim
de cara porque como fez
questão de dizer logo que
soube meu nome tem medo
de pombas e foi assim que
se despediu aos gritos de
una paloma, una paloma!
sem deixar que eu a beijasse
mas tivemos nossos momentos
e foram tão lindos como
o seu sorriso inesperado
quando sozinhas no quarto
lhe disse que tinha dois filhos
e ela me perguntou onde
estavam e eu disse que com
o pai e ela quis saber
então quem era o homem da
sala e concluiu que eu tinha
dois namorados e sorriu
antes da despedida ela
me deixou ver o que estava
fazendo com o caderninho
que lhe demos de presente:
um diário de cachorros dela
e dos outros para não
esquecer ela repetiu
para no olvidar


5.6.21

a. quer ir embora
do brasil
pelo telefone
p. me conta o que eu
já sei
e chora
pelo caminho do brasil
não dá para avançar
tudo já foi dito
ou não mas
o que não foi 
dito foi porque
não deu
então eu digo:
isso tem a ver
com a gente 
o que é o mesmo
que dizer 
isso tem a ver com
o brasil
eu sei
ele diz

28.5.21

eternidade

mando pra f.
a foto de uma pomba
no sol
que ele tirou
há dois anos
em buenos aires
brincando que era eu
ele fica surpreso
e animado: 
"agora a pomba
vai ficar eternizada
nesta mensagem"


24.4.21

de tempos em tempos
rearrumo meus livros
às vezes há lindas
surpresas às vezes
bastante vergonha
e escrevo em um
caderno de borboletas
o nome do livro
que podia estar
só que não está
porque nunca tive
porque perdi, porque
emprestei e esqueci
e pode acontecer
como f. sabe
que em alguma outra
rearrumação
eu tenha mudado
de lugar e a falta
seja só de
memória mesmo
aí eu anoto
também no caderno
com borboletas
os critérios de 
rearrumação
e pode acontecer
de esquecer o critério
do critério e por que
fazia sentido juntar
os livros que me fazem
escrever se afinal
quem é que sabe
ou por que poesia
separada da prosa
ou então por que
espanhol separado
do português 
se eu nunca separo
nada de nada
mas como f.
diz é bom tentar




20.4.21

sínteses

mãe
ou você compra livros
que já tem
ou que não vai ler


mãe
ou você escreve sobre
o roland barthes
ou sobre você

7.3.21

a cada dia
eles põem à prova
o que eu faço
o que eu digo
filhos alquímicos
testando novas
composições
achei que não
fosse gostar
mas até que
gosto


1.3.21

mãe
"estou me sentindo 
muito esquisita"
é uma frase
icônica
sua

24.12.20

faz algum tempo
que ele me conta
sonhos pelo telefone
ele me diz: essa noite
eu sonhei e ele conta
o que antes talvez
contasse pra sua analista
e que com a morte dela
precisa de outras orelhas

penso no telefone 
sem fio entre a orelha 
dele e a minha 
e a de seus pacientes
um inconsciente coletivo
contando o incontável
como a mulher
que deixou o hospital
e saiu andando
pra morrer na rua
que nem personagem
do fellini 

não tem nada pra 
interpretar só escutar
dizer estou
te escutando sim
pode falar

14.9.20

15 anos

estou na rua
t. me manda uma mensagem:
é hoje, né?

no mesmo instante
o chão vacila
e me desequilibro

temo logo
uma doença incurável
ou talvez seja culpa
do uso da máscara

é só o tempo mesmo
que passa rápido
demais


28.8.20

para a mayra

o que é que importa?
que a. acordou com 37,7 de febre
e me corta a respiração pensar
que ele pode estar com covid
ou que ele esteja muito magro
desde que teve apendicite e eu me culpe
por não conseguir convencê-lo a ter
uma alimentação saudável
ou que eu não saiba direito o que é
uma alimentação saudável
porque não sei direito de onde vem
a comida que eu como?
ou que o atual governo queira acabar
com a natureza e com a cultura
ou que f. ainda ria de todas as minhas
piadas e a. não ria de nenhuma
que eles são o sol da minha vida
e isso seja uma metáfora
talvez um pouco gasta
mas não menos eficaz
ou que este jeito de escrever seja
viciante e que eu tenha me viciado
depois de traduzir durante
os primeiros meses da quarentena
um livro de margo glantz
chamado "y por mirarlo todo, nada veía"?
ou que eu não consiga me separar
de nada e de ninguém
ou que isso não seja totalmente verdade
e que eu tenha muita dificuldade
de dizer o que é verdade e o que não é
e que talvez por isso eu diga muito
"talvez", "um pouco" e frequentemente
não complete as frases
o que irrita muito meus filhos
e meu namorado
ou que eu gostaria de chamar
meu namorado de "meu homem"
mas que isso talvez seja cafona
e que eu tenha dito a muitas pessoas
que estou escrevendo um conto erótico
e que agora já não consigo escrevê-lo
porque o brasil acaba com a libido da gente
ou que a gente precise resistir a isso
com todas as nossas forças
ou que a palavra "resistência" esteja
muito gasta e ainda assim seja
necessário usá-la?
ou que minhas amigas me perguntem
por whatsapp se minha dor de cabeça
passou e isso me faça chorar
ou que eu chore muito ultimamente
e que chorar não adianta nada
que as pessoas deveriam se juntar
por zoom para chorar juntas
mas que talvez essa não seja uma boa
e seja muito melhor a ideia de uma amiga
de fazer "coreografias de apartamento"
que ela posta no instagram
que eu agora use o instagram
mas não saiba direito como
e prefira o twitter como m.g.
que tem 90 anos e quase 50000 seguidores
e que eu só tenha 1 seguidora
ou que uma amiga tenha dito
que o twitter é o melhor lugar
para se divertir em tempos de crise
mas isso foi antes do bolsonaro?
e que as redes e o zoom e os streamings
e tudo mais que acontece online
nos deixe assoberbadxs
e angustiadxs
e ao mesmo tempo entusiasmadxs
que agora eu use o x para não marcar o gênero
e que isso signifique um problema
na hora de ler em voz alta
e por isso seja melhor o "e"
e que antes uma regra deste blog
era não falar de escrita ou deste blog
mas isso mudou no final do ano passado
e agora já não tem mais volta
e que a sensação de que
não tem mais volta nem sempre é ruim
mas aplicada ao brasil de agora
seja extremamente triste
e que para não ficar triste
eu escreva sem parar
mensagens, posts, diários, listas
e também isto aqui
ou que usar a escrita para isso
talvez a banalize
mas entre a banalidade e a tristeza
eu prefiro a banalidade
e que seja difícil saber o que é banal
ou não e que seja preciso arriscar?
ou que uma amiga mande em um grupo
uma matéria de uma capivara
que aproveitou a praia vazia
e foi nadar no mar
e que minha amiga chame isso
de rolêzinho
e que meu último rolêzinho antes
da quarentena tenha sido
com minhas amigas no dia
internacional da mulher
e que isso pareça uma pré-história
e que de lá pra cá sofremos muito
com nossa penas e as dos outros
e então o que importa?
que talvez importe não parar
de se importar

13.8.20

ele também me explica
que está pensando
e brincando
ao mesmo tempo

8.8.20

f. usa a palavra
vulnerável

8.6.20

hoje ele veio
raramente falamos
de lembranças e menos
ainda de partos
mas desta vez é
isso, o meu, o nosso
falamos do parto de f.
o filho é o filho
quando se corta
o cordão nessa hora
mas e o homem
é uma dúvida que
eu tenho
esse homem que
me diz coisas cortantes
me acompanhou
no nascimento
e quem sabe depois
onde estaremos
fico à distância dele
quando vejo já estou
cortando os versos
no intervalo do sentido
ao invés de deixar
as palavras se separarem
onde elas não estão
em geral separadas
acontece que esse homem
continua vindo aqui
e falamos sobre partos
e sobre mortes
e ele me diz
o que minha lembrança
tinha escondido
sabe-se lá onde
porque naquele dia
ao contrário do que eu
gostava de contar aos
quatro ventos quando
ainda ventilavam
que foi tudo muito
tranquilo naquele dia
acontece que ele
me acompanhou
e só ele se lembra
do pavor que sentiu
porque eu quase
morri naquele dia
no parto de f.

27.5.20

qual a lógica



11.5.20

e ele continua
falando sozinho
agora avidamente

9.5.20

alívio

f. vem até mim
e pergunta:
mãe, 12 x 60
é igual a 60 x 12?
ufa, ele suspira,
ainda bem

11.4.20

a. tem twitter
seu nome é vidin
todos os posts
são sobre animes
a não ser um
de 29/12/19
que diz
"adeus
tuca
sentiremos
sua falta"

9.4.20

f. tem falado
mais sozinho
os argumentos
vão e vêm
como um diálogo
ora veloz
ora pausado
não sei direito
o que ele diz
do outro lado
do quarto
da sala
do banheiro
da cozinha
mas conheço bem
essa necessidade
de se desdobrar
pra tentar continuar

19.3.20

ficções

tenho tido vontade
de escrever pra pessoas
mortas
comecei pela
minha avó
agora pensei
no barthes:
ah! se você
soubesse
é estranha
a sensação porque
não acredito
em nada
é uma ficção
mesmo

mas aí ontem
vi um vídeo
de um homem
voltando pra casa
num trem lotado
às 6 da tarde
e eu aqui trancada
com os meus
meninos
pensei que a gente
está mesmo
vivendo
num teatro
fingimos
acreditar

10.2.20

workers of the world

você vem assistir
à cerimônia do oscar
na minha casa
não digo não
quando você pede
não é mais a mesma
cena de vocês três
que eu gostava tanto
como espectadora
por momentos você
relaxa e ri como antes
ou quase porque sabemos
que a espera é tensa
quando o oscar vai
para "american factory"
você suspira
vitorioso
não fico com raiva
era previsível
o que nem eu
nem você esperávamos
era que os americanos
vencedores
agradecessem
citando o manifesto
comunista


7.2.20

sonhei que contava
para p. sobre o livro

ele estava usando
uma jaqueta jeans
azul-escura
que na realidade
é azul-clara
ou vice-versa
eu me aproximava
e me inclinava
e aproximava
a mão de onde
um dia esteve
a estrelinha
vermelha 


(às vezes
quando ele vem
aqui ver os meninos
eu me aproximo
e o abraço antes
de que ele possa
reagir
)

o sonho era
feliz eu acho
mas não tenho
certeza 


5.2.20

glantz

mi abuela 
es escritora
y le gustan
los cojines 

20.1.20

residente permanente

acho engraçado
quando às vezes me perguntam
a vos te gusta vivir
en brasil?

4.1.20

a vida é brutal
diz meu amigo
citando francis bacon
só conseguimos
falar sobre isso
eu corto a conversa
pra dizer que você
aceitou vir comigo
pro méxico
planejamos mais uma
cidade no nosso mapa
contrariando essa vida
que nos leva pra onde
bem quer
enquanto isso
viajo atrás deles
morro de medo
busco sem ar
momentos felizes
porque nunca se sabe
digo a você
só o que é possível
à distância
falar pouco
me protege
mas não é só isso
a dor vive
em silêncio
e ela é minha
companheira

25.12.19

um lugar para ela

mãe
eu nunca imaginei que fosse
te dizer isso
nunca imaginei
a. tinha uma amiga
com a mesma inicial dele
para ela ele dizia
o que não dizia
para ninguém
e agora ele tem que
me dizer
o que imaginou
que nunca me diria
ela morreu
ela se matou


*


vamos enterrá-la
não é mais ela
diz a mãe
a. não é mais a.
ele segura a mão dela
antes de que fechem o caixão
ele passa a ponta dos dedos
numa fitinha de bonfim
vermelha
igual à que ele
leva no braço


*


a regra disto aqui
era não falar disto aqui
isto não é um diário
"é um livro que não acaba"
eu dizia
mas não vou mais
dizer


*


enquanto isso
caminhamos
pelo cemitério do araçá
e eu escrevo mentalmente
só porque
preciso acreditar
em alguma coisa
alguém
diz que ela está
em um lugar melhor


*


quando chegamos
nos perdemos
a. se lembra
do père lachaise
e diz que lá havia
um mapa
há cemitérios bonitos
que são lugares turísticos
para onde levei
meus meninos
já escrevi sobre isso
mas isto é diferente
é inimaginável


*


a regra disto aqui
era não escrever disto aqui
mas a vida não tem regra


*


eu nunca imaginei
que ele fosse viver
algo assim
perguntamos para um rapaz
onde fica o velório
ele indica o caminho
a. fica aliviado
não estamos passeando
estamos na dr. arnaldo
estamos em são paulo
a cidade deles
a vida deles
todas as vezes que passarmos
por aqui
vamos lembrar dela
do que imaginamos e
não imaginamos
para ela


*


ele segura a mão dela
depois me diz que sentiu
falta de uma pulseira
sua preferida
azul
mantemos uma conversa
entrecortada
pelas contas da pulseira
pelo que ele não pode
me dizer
nunca imaginamos
é a primeira morte
que vivemos juntos
é inimaginável


*


digo para ele
que podíamos
recuperar fotos
as músicas que ela ouvia
quem sabe
um álbum
é uma boa ideia
mãe
ele diz







16.11.19

estou em uma cidade
que mal conheço
vou a uma osteopata
é uma mulher bonita
leve
apresento a ela
meus lugares-comuns
a escoliose
a natação
as dores
tento explicar
em francês
que nada disso é novo
é sua fragilidade
ela resume
pede para eu deitar
interrompendo o silêncio
ela pergunta
há quanto tempo
estou viajando
20 dias
e quanto falta
para voltar?
20 dias
40 dias no total
sim, 40 dias
tenho vontade de perguntar
se ela acha muito
ela sabe que tenho
dois filhos
e um DIU
que tive dois partos vaginais
e tenho um namorado
nos estados unidos
é uma mulher leve
e firme
há sinais de que ela
também viajou
formas e cores
que não parecem dali
é provável que nunca mais
nos vejamos
eu vou ficar sem saber
se é muito

26.10.19

pós-perda

sempre comprar cadernos pequenos
nunca tirar cadernos completos de casa
pensar bem ao tirar um caderno de casa
pensar bem ao tirar qualquer coisa de casa
sempre olhar pra trás ao sair de algum lugar

15.9.19

com l.a.s.

cuando se cansa
de tanto querer
ella es tan clara
que ya no es
ninguna

9.9.19

três pês

a. me diz
que detestou
"bacurau"
me dá seus
motivos
eu me irrito
ele se irrita
eu provoco:
"seu pai já viu?"
não é isso
que eu quero
perguntar
ele entende
fica em silêncio

da escola
manda mensagem:
mãe
tava pensando
em "bacurau"
conversei com
o pedrão
vi de um jeito
diferente:
"bacurau"
não é bom
mas não é ruim
depois a gente
conversa

a. adora
o professor
de geografia
me disse
que as aulas
são ótimas
que ele sabe
ouvir
tenho vontade
de dizer a ele
que é uma sorte
que entre p.
e eu
haja um pedrão

29.6.19

conto para ela
do meu novo amor
a voz da experiência
me censura:
no te hagas ilusiones
tento traduzir
para o português
não me iludo
para variar
muito se perde
a começar
pelas ilusões
não digo à voz
da experiência
que não tenho
nada a perder
também não digo
que a vida é feita
de ilusões
fico na minha
me quedo en el molde
depois canto
para ela
um canção do roberto
em portunhol

16.6.19

oficina de escrita

ele diz que eu ainda
acredito no amor
não sei se ainda
é a palavra
que cabe na frase
mas tudo bem
também não sei
se a palavra acredito
deveria estar ali 
não é fácil formar frases
com a palavra amor
ele escolhe a palavra 
borboleta e eu digo
que é uma ótima palavra
k. escreve com ela
um texto em que conta 
como na sua infância
catavam borboletas
que guardavam em potes
com pequenos buracos
para deixá-las respirar

26.5.19

baby

acordo com a palavra "baby" na boca
não sei se é você 
ou a canção do caetano
“você precisa saber de mim”
fazia tempo que não lembrava
desse apelido
no sonho estou olhando para o passado
choro e uma amiga me consola
dizendo que minha pele
está muito bonita
quando você me perguntou
se o curso de cinema de a.
era marxista te chamei
pela primeira vez de "meu bem"
como faço com pessoas queridas
algumas próximas outras nem tanto:
"meu bem, o que isso quer dizer?"
eu te disse
você não soube responder

15.5.19

mikrokosmos

e. deu aulas de piano
para a., f. e p.
o primeiro foi a.
aos cinco anos
antes de f. nascer
quando f. fez  cinco
foi a vez dele
no meio tempo
p. quis também
os meninos abandonaram
ele continuou até
a separação

um ano depois
liguei pra ela:
é a minha vez
afinei o piano
catei o “mikrokosmos”
do béla bartók

hoje ela me mostrou
um risco bem forte
que a. fez no livro
quando passou
do exercício 7
que achou chato e difícil
gostei de estar tocando
o exercício que ele
tocou

só hoje contei pra ela
que isso tem a ver
com um novo amor





19.4.19

f. é do tipo
no creo en brujas
pero que las hay
las hay
a. prefere acreditar
que é tudo ficção:
"jesus morreu,
bora não comer carne,
é isso?"

12.4.19

o carro branco da sua família
foi alvejado por brasileiros
com atribuição constitucional
de zelar por vocês
por nós
no desabafo tomado
da forte emoção
pela perda do seu marido
você fez o diagnóstico correto
sob a mais aguda dor
foi capaz de lembrar
que disse ao evaldo
"amor, calma, é o quartel"



9.4.19

tudo bem

esqueço
que está tudo bem
que estou na paulista
que o plano cobre
que foi bem a tempo
que a febre baixou
que você ligou
que é assim mesmo
que a dor vai passar
que o médico sabe
que ele dormiu bem
que é só ter paciência
lembro
e assim mesmo eu choro
porque não está tudo bem
está tudo uma merda

18.3.19

eu

uma mulher
que escreve

16.3.19

delicadeza

ganhei uma caixa de bombons
de um aluno
coloquei no armário da cozinha
a. comeu todos
menos um

14.2.19


com p. m. r. 

para começar a viagem
o porteiro que me diz:
la globalización nos mató
digo a ele meu nome
e ele me promete
que não vai esquecer
se eu não anoto esqueço
por isso desde que te conheci
anoto o que penso em te contar
para começar
uma mulher que diz:
y quién va a querer
ver una película brasileña?
eu quero ver um filme argentino
para te contar depois
que o pai da diretora
era gay e militante
comunista nos anos 70
que iam à disney
que ele morreu
caindo estupidamente
de um cavalo bravo
quero que você me diga
se isso é familiar para você
desde que te conheci
achei tudo muito familiar
como este bar da esquina
onde me acomodo agora
como se a viagem
fosse eterna



9.2.19

ninho

no ninho do urubu
onde um incêndio matou
nesta sexta-feira 8
dez atletas adolescentes
morava um dos mais belos sonhos
que se pode ter na vida:
ser jogador de futebol

3.2.19

minha mãe pergunta a si mesma
ou ao tempo
ou à xícara de café
que ela olha
sem olhar pra mim
por que ela não perguntou
certas coisas
pra sua mãe
por quê?
eu devolvo a ela à pergunta
minha agora
também

24.1.19

fungos

passo uma escovinha em cada folha
e a baba branca se agarra às cerdas
que mergulho em leite com açúcar
e volto a passar em cada folha

quero muito acreditar
que a doçura
vencerá

16.1.19

ano novo

e se de repente
a mesma inicial
for um novo amor?

16.12.18

vista para o mar

meu pai me conta rindo
que tem sonhado com bolsonaro
diz que o inconsciente está
tentando resolver o que
na realidade
não tem solução:
ontem sonhou que ele
escolhia uma ministra argentina
para cuidar de assuntos culturais
e dava a ela um gabinete muito pequeno
com vista para o mar
parecía mar del plata
e ri de novo

2.12.18

razón

a personagem do filme
diz que a vida
faz com a gente o que ela quer
k. concorda:
tiene razón

15.11.18

você me conta que está lendo
drieu la rochelle
drieu de la rochelle
repito
você me diz
que é sem o "de"
pergunto por que
você diz que não se lembra
por que chegou a ele
eu me lembro vagamente
de quem ele é
quando chego em casa
procuro no google
vejo que ele se chama
pierre
e que foi um colaboracionista
durante a invasão alemã
lembro que foi amigo
do nosso aragon
o poeta comunista
que nos uniu
por alguns meses
aragon rompeu com drieu
como era de se esperar

8.11.18

comprei uma samambaia nova
e dei a ela o nome de matilde

29.10.18

a samambaia morreu
ela me lembrava os anos 80
que foi quando a gente se conheceu
que foi quando a ditadura acabou
tudo vira símbolo
ou alegoria
sinal dos tempos

12.10.18

aparente

de repente
ou nada de repente
com a brutalidade
do que ao aparecer
já estava lá
de repente
blasers pretos
e botas pretas
e cinto e calças
mais apertadas
de repente uma ordem
uma limpeza
só aparente
de repente
me alegram
piolhos
que a. prefira
a mochila rasgada
os chinelos desbotados
que não combine
nada com nada
que não esteja nem aí
para a aparência
porque p.
de repente
ou nada de repente
resolveu
aparentar

10.10.18

não tenho sonhado
mais

29.9.18

prioridade

enquanto espero
minha vez de falar
na mesa redonda
faço exercícios
para o períneo

24.9.18

os sonhos que são para ela
eu faço
os meus
eu tenho

18.9.18

dominique

agora os sonhos se dividem
entre os que são para mim
e os que são para ela

12.9.18

sua cartada final
continua sendo:
você está mal
informada

2.9.18

para pizarnik

depois de dias te lendo
sonhei com a minha mãe
a extrair da minha coxa
um pássaro morto

15.8.18

nao consigo me separar
do livro da chantal thomas
então o trouxe pra dormir comigo

ainda bem que não fiz o mesmo
com p.



12.8.18

a. adquiriu o hábito
de mandar mensagens
de whatsapp
para sua pediatra
ela me conta que
ele diz coisas como
“arder o pulmão”
“dor perto do coração”
e sugere que eu
deveria guardá-las

3.8.18

p. me conta que voltou
a estudar grego antigo
fico dias pensando sobre
o que isso significa 
há muitos anos, lá atrás
lá no início 
fizemos isso juntos
antes mesmo do início
na nossa pré-história 
estudávamos grego
com um manual escrito 
em alemão gótico
depois frequentamos
um grupo de estudo
num casarão em ruínas
em santa teresa
tudo isso nos divertia
e nos unia
ele então agora
voltou sozinho 
a estudar grego antigo
não fui a única que 
achou isso significativo
por telefone ele
me confessa:
“achei que você fosse
ficar com inveja”

27.7.18

escritos geográficos

artigos, entrevistas 
projetos e textos publicados
em jornais, revistas, livros e internet 
do prof. claudio ferreira terezo
geógrafo, autor
do novo dicionário de geografia
consultor ambiental do site terra
e colaborador da revista geografia
essencial para estudantes
e professores de geografia 
e ciências afins

22.7.18

na praia

minhas amigas são minha praia
elas são borda, são espuma 
são mar
meu mar
minhas amigas são o mar
que se recolhe e volta com tudo
são os restos que traz
a maré baixa
são o segredo do mar
e a falação da areia
são a alegria da onda
saltada a tempo
são o tempo da arrebentação
minhas amigas são
minha praia
nelas eu quero 
morar


1.7.18

tu abuela


arreglando mis cosas encontré
un pequeño cartoncito en el cual
escribías a tu abuela del amor
que sentías por ella
del susto que te dió
porque había estado enferma
muy amorosa
muy delicada
emociona

27.6.18

frustração

em 1988
eu tinha a idade 
que a. tem agora
meu pai decidiu me levar 
a salvador onde até hoje 
vai a trabalho
fomos até o galeão
mas não embarcamos
por causa de uma greve
quando a companhia aérea
ofereceu hospedagem àqueles
que não moravam no rio
meu pai prontamente
me explicou que a partir
de então esse era 
o nosso caso
talvez ele tenha começado
a falar comigo na frente
de todos em espanhol
ou talvez seu sotaque
tenha bastado
para compor a cena
tomamos um ônibus
para o hotel othon
na avenida atlântica
tudo era divertido demais
para parecer errado
e afinal de contas
minha frustração merecia
ser compensada de algum modo
teríamos duas diárias
de frente pro mar
no dia seguinte
meu pai me deixou
em casa e levou
minha mãe pra dormir
com ele